Namorados


Uma das coisas que desde cedo me surpreendeu, no meu projecto “Oldfashion”, foi a escassez de namorados.
Refiro-me aos namorados em fim de adolescência ou início de idade adulta, algures entre os 17/18 anos e os 25/30 anos.
Nos outros grupos etários, acima deste, também fui surpreendido, mas pela positiva: apareceram bem mais do que eu esperava.
Mas naquela idade, em que se diz ser própria do namoro (como se houvesse uma idade certa para namorar!) poucos foram.
Entre as excepções, recordo uma em particular:

Passou-se num Domingo, dia de festa e música no Jardim da Estrela, pelo que estava à pinha.
De entre a multidão surge um casal com uma cara jovem conhecida: trabalhamos na mesma empresa. A jovialidade e alegria dela, que sempre nos contagiaram, desta feita transbordava por todos os poros.
Depois das saudações e beijocas da praxe, quiseram, ele e ela, fazer uma foto.
O cúmulo do invulgar não foi o relacionamento e as idades. Foi que, no lugar de olharem para a objectiva e ou fotógrafo, para o futuro, para o espectador, como todos os restantes, a sua pose foi a de olharem um para o outro, intensamente, como se o mundo e o tempo se resumissem a ali e então.
Bonito de ver e mais ainda de viver!
Acontece que eu estava em dia de surpresas: enquanto a caixa de madeira transpunha para o papel aquilo que a luz mostrara, era a altura do pequeno inquérito onde, e para além do primeiro nome (e só esse) e de outras minudências, perguntava pelo ofício.
E ela, que fazia as despesas da conversa, depois de dizer de si mesma, voltou-se para o companheiro e atirou-lhe: “Olha lá! Afinal, em que trabalhas tu?”
Espero que a minha cara, escondida que estava atrás da minha barba e sob o boné, não lhes tenha demonstrado a minha estupefacção.
Mas espero, por outro lado, que tenha espelhado a minha alegria por constatar que, pelo menos para aqueles dois, os afectos se sobrepõem às questões comezinhas e materiais, como “que fazes?” ou “quanto ganhas?”!

Na imagem? Não, naturalmente que não são eles. Que a minha câmara, por muito boa que seja, só consegue registar o “agora-que-já-é-passado”. O futuro ainda não está ao seu alcance.
Na imagem está, antes sim, um outro casal de namorados. Os de idade mais avançada que passaram e pararam em frente da minha câmara.
E que, para além desse detalhe que, só por si, faz dela uma imagem ímpar, foi este o único momento em que não estiveram agarrados, de mão dada ou braço dado, das muitas vezes que os vi passar no Jardim da Estrela.

Que os jovens tenham pudor, receio ou mesmo medo de, com uma fotografia, fazerem um documento mais ou menos comprometedor de um compromisso que não querem ou não sabem assumir, ainda entendo. Além do mais, já não é para os jardins que vêem namorar. E as fotografias dessa intimidade semi-pública são feitas pelos próprios, que não há jovem que não tenha câmara, telemóvel que seja.
Agora este casal de namorados, assumidos que mo disseram, terem esta atitude perante a câmara… Talvez um dia o entenda, se tiver a sorte de chegar enamorado a esta idade.

Texto e imagem: by me

Três gerações, três continentes


Chegaram, mãe filho, este ao colo dela. Aliás, teria que ser assim se para trajectos maiores, que o pirralho era tão piquinino que o seu andar pouco mais era que pôr um pé à frente do outro para não cair.
Falámos um pouco e fizemos a fotografia. E quedámo-nos na conversa, mesmo depois da função terminada.
O pequenote, esse, é que pouco se interessou no que dizíamos. Partiu para descobrir novos mundos, na imensidão de uns dez metros em redor. E, sendo o seu caminhar o que era, cedo caiu.
À distancia a que estava, a mãe constatou que nada de grave acontecera. Tal como eu. O minorca, estendido ao comprido, de barriga para baixo, olhou em redor, sem choro ou beicinho, verificou a proximidade da mãe e lá se levantou para mais uma caminhada. Que acabou em queda de igual gravidade.
Afinal, é assim que aprendemos a caminhar, caindo, levantando-nos e continuando. E aprendendo como usar o que temos e onde e como pôr os pés.
A sua inexperiência era tal que, passado pouco, ei-lo de novo no chão.
A mãe, estrategicamente colocada na nossa conversa, ia verificando o resultado das quedas, ao mesmo tempo que se certificava que o seu trajecto não coincidia com o das bicicletas, shates ou patins que por ali pululam. Estava tudo controlado e tranquilo.
Quem assim não pensou foi uma velhinha, com ar de avó tremida mas extremosa, que à terceira queda do aprendiz de caminhante, achou que era demais.
Levantou-se do seu banco de jardim e, com uma dificuldade em caminhar equivalente à da criança, abeirou-se dele e levantou-o do chão. Regresando de seguida ao seu lugar sentado, não fora ser este selvaticamente ocupado por algum dos muitos outros idosos do jardim.
Pouquinho tempo depois, a cena repete-se: o pimpolho cai, a velhinha levanta-se e levanta-o e regressa ao seu repouso. Tudo sob o olhar vigilante da mãe, que ia cavaqueando comigo, à beira da minha câmara e tripé.
À terceira a coisa foi diferente: Depois de levantar o pequeno, que continuava sorridente como sempre, caminhou para nós com ele segurando-lhe o dedo. E a sua expressão advertia das advertências que haveria de dar à mãe “descuidada”.
Nada ouvi, que se encontraram a meio caminho, com troca de dedo agarrado. Trocado por calças, à altura dos joelhos, quando regressaram para junto de mim.
Com um sorriso, disse-me ela que este era um dos motivos para gostar do Jardim da Estrela: Fora aqui que ele dera o seu primeiro passo e era aqui que estava a aprender a andar. Bonito de ouvir!
Como que inspirado na conversa, o rapazinho afastou-se caminhando, de novo em direcção ao local onde a boa da velhinha continuava sentada. E a mãe, continuando a sorrir e fazendo contrastar o tom dos dentes com o da pele, acrescenta: “É melhor ir busca-lo antes que ela venha cá de novo!”
E foi, regressando ele ao colo e com a mãozinha esticada para a pelagem branca que me cresce no queixo e cara.
Quando, passado um pouco, se foram de vez, fiquei pensando que, na verdade, a melhor forma de aprender é ir caindo até aprender a coisa. E aproveitar a pequenez da altura para que as quedas sejam pequenas e pouco dolorosas.
Acontece, porém, que há sempre uma avozinha, cheia de boas intenções, que se intromete e tenta mudar o curso natural da vida. E que, ou bem que já se esqueceram que foram crianças e mães, ou bem que mais nada lhes resta fazer que interferir na vida dos outros, queiram ou não eles que isso aconteça.

E quem é que está na imagem? Pela certa que não se esperaria que eu aqui mostrasse os intervenientes neste episódio em torno do meu “Oldfashion”!
Em alternativa mostro este retrato. Que em comum com a estória apenas tem o local onde foi feito e minha câmara de madeira. Que a estória falou de três gerações e aqui mostro a Ana, vinda de um terceiro continente.
É que o Jardim da Estrela é assim como que um centro do mundo, onde de tudo acontece e onde de tudo converge.


Texto e imagem: by me

The dog!


During these more than three years of my “Oldfashion Project” (here or here), I’ve being able to photograph all kinds of persons: from judges and ambassadors to beggars and garbage collectors, from famous writers and singers to anonymous clerks and bartenders, from just born babies to over 90 years old. The park is as rich of life as that and even more.
But the oddest picture I was asked to do is this one: not the owner and the dog but jut the dog!
Of course it would be better if he would stand a bit on the left or closer; of course it would be better if the sun would hit it to create a nice back light; of course it would be better if I’ve used a lower perspective; o course it would be better if…
But photographing with a fake old camera, a kind of view camera, with no viewfinder but my head in it, shooting standing beside it and with a cable release, having over than a second of delay, is not easy. Even worse if the subject is a young dog, with lots of other dogs hanging around with their owners.
Never the less, the owner liked it, so did I and I hope the same happened with the model.
Thank you, Oscar, for your patience!

Texto e imagem: by me

Em luta


Pelo que me pareceu, a rapaziada que por ali andava tinha deitado para o chão aquele meio pastel de carne. Não sei se por não gostarem dele se porque carga de água. Mas ali ficou, com um comentário mental meu, que mais valia terem-no deitado no caixote, que disso por ali não falta.
Seja como for, os pombos acabaram por o ver e vieram por ele. Primeiro um, depois outro, depois aos pares e aos trios, acabaram por ali se juntar mais de uma vintena de pombos. Todos atraídos pelo meio pastel de carne, suculento e apetitoso.
Mas se eram muitos, poucos puderam descobrir a que sabia. Que desde cedo veio um pombo maior, corpulento e de penas rebrilhantes, que entendeu que aquilo lhe pertencia. E sua convicção era tal que mal conseguia dele comer, tal era a senha com que corria à bicada e assanhado com todos os outros que se aproximavam.
Estes, grandes e pequenos, machos e fêmeas, usavam de todas as artimanhas, desde chegarem-se em grupos até esperarem que ele se afastasse um nico, correndo com alguns, para virem pelas costas. Mas de nada servia, que ele a todos topava e a todos corria.
Incomodou-me! Afinal, ainda que fosse só meio pastel de carne, os seus sete a oito centímetros de comprido eram bastante mais do que caberia no seu papo e daria, pela certa, para partilhar com os restantes.
Avancei, de navalha aberta e, para espanto da garotada que por ali convivia, baixei-me e cortei o pastel em quatro, afastando as partes um pouco umas das outras. Daria para todos, pensei.
Como me enganava! No regresso de lavar a lâmina no chafariz do parque, dou com o tal matulão, bem no meio das partes no chão, a reclamar a sua posse em luta com os que se aproximavam. Tinha muito mais trabalho, que a área a cobrir era francamente maior, mas bicava a torto e a direito, sobre todos os que quisessem uma nica.
Fiquei francamente furioso. Afinal aquilo dava para todos! Em duas valentes passadas aproximei-me, enxotei todos em redor e, a pontapé, afastei francamente os restos mortais do pastel. Sempre queria ver como é que o valentão iria defender aquela área enorme. Não o fez!
Depois de ter andado de um para outro, apropriou-se do maior e defendeu-o com a mesma energia de sempre. Aos restantes acercaram-se os menos afoitos, mas ficaram confrontados com outros proprietários, de menor porte mas suficiente para defender aqueles pedaços menores. No lugar de um grande ditador, criaram-se quatro ditadores, cada um à medida do pedaço que defendia. Os mais pequenos, esses, acabaram por conseguir bicar apenas nas migalhas que saltavam para longe dos pedaços grandes. Até que tudo ficou consumido e limpinho, como se nunca ali tivesse estado. E partiram para outras paragens!

Para que não haja confusões nem erros de interpretação, deixo aqui uma imagem ilustrativa. Ficar-se-á assim com a certeza de que estou a falar de pombos num jardim e não de homens em torno de um lugar na política ou de um posto de chefia numa empresa.


Texto e imagem: by me

The last one


Most of the times, we do know when we are doing our first picture. A person, an object, a situation. And also we use to remember it, since the first time is always important.
But, do we remember the last one? Do we ever know, when shooting, if it is the last one? Generally, we don’t! We may realize, latter, that it was the last one, but, knowing it when pressing the shutter release, is seldom.
Through the years I had the chance of being there when the last photo was done. And when the one in front of the camera not just knew it, but also make everything so that the picture was done.
The first time happened some 40 years ago and I was an eyewitness. It was, probably, one of the most important photographs of my life.
Another one took place last year. This one!
One day, in June, these two came to me, at the Jardim da Estrela, where I play the role of an old fashion photographer, with my fake old camera.
They wanted to know if I have two pictures, one of each one, but both of them with a friend. He died some time before, but they want to have that souvenir. I did, but at home, so I promise them that I would bring it with me next time.
A week or so later we meet again and they received their photos. But she wanted some more: a photograph of both of them. And, of course, I did it. But they look so in love that I also took this one, with my reflex camera. Some time after we meet again, he and I, and I give him the photograph.
Since then, we meet several times. He only. I never saw her again, walking around the park as she use to.

This week he came by once more and we chat a little. At some point, I ask him about her.
“She died last November”, he told me. And, shrugging his shoulders, he added: “Women problems, you know!”
I was speechless. What can we say on those moments?
But he added, smiling as always:
“I guess she knew it was her last picture, that one you make of us. You know, I still have it at home.”

We said some more non important things and he went away, with his swinging walk and his long lasting smile.
And I stood there, thinking on how the meaning or importance of a photograph can change. A trophy to some, a memory to others or even a farewell from those who left.
Is not easy to know we did the last one!


Texto e imagem: by me

Cosméticas


Já tinha estado em frente da minha câmara de madeira na véspera.
Na altura notei que estava a arranjar o cabelo, percebi o que queria mas, apesar de ter visto que não o tinha conseguido, entendi que não devia fazer nenhuma observação nesse sentido. Afinal, não posso nem devo fazer grandes alterações ao que os meus “clientes” querem mostrar em frente da objectiva.
Mas voltou no dia seguinte. Como se nada fosse e sempre tão divertida e bem disposta como aqui se vê, meteu conversa e pediu para fazer uma outra fotografia. E tornou a arranjar o cabelo.
Não pude deixar de me condoer com os seus esforços, e lá fui dar-lhe uma indicaçãozinha sobre até que ponto tinha que transformar o “rabo-de-cavalo” em “totó”, para que se visse.
E ela gostou tanto do retrato de corpo inteiro, que lhe fiz este outro, que levarei comigo impresso para lho dar.
Quem sabe se Tema Monteiro não será sua parente?


Texto e imagem: by me

Não é fácil


Não é fácil ser-se diferente! Não aquele ser-se diferente porque se quer ser diferente, ou por pura rebeldia ou para ser-se visto ou notado.
Refiro-me àquele “ser-se diferente” apenas porque apetece ser-se assim, independentemente dos códigos em vigor, das opiniões dos circundantes ou das reacções que se provoca. Ser-se diferente apenas porque se o é e nada mais. Não é fácil!
E no Jardim da Estrela é fácil encontrar-se quem seja diferente.
Desde logo eu mesmo que, para além da minha figura, estou ali a ofertar fotografias por um qualquer motivo obscuro. Que alguns entendem, que outros toleram e que outros ainda, porque não entendem ou toleram, insultam ou denigrem.
Há o caso, igualmente diferente, daquele que se diz pintor de construção civil e que é visto e ouvido no jardim quase todos os dias. Em regra, ouvimo-lo antes de o vermos, que tem na sua bicicleta um potente rádio a pilhas, ao estilo dos velhos “tijolos”, que vai ouvindo enquanto pedala, impondo aos demais utentes do jardim a sua escolha musical. Goste-se ou não dela! E, claro está, basta um olhar para o sabermos um adepto incondicional do Benfica, pela cor com que pintou o velocípede e pela portentosa e colorida bandeira que lhe está acoplada.
Temos também aquela outra senhora, já na casa dos sessentas, bem gorda e volumosa, que transporta sempre consigo uma enorme e pesada mochila. Nunca soube o que lá tem, que nunca o mostrou nem dela falou. Nem mesmo quando o álcool a faz ser menos normal ainda e se torna conflituosa para com passa por ela, falando-lhe ou não.
E temos o caso presente. De idade indefinida, mas avançada, cabeça sempre rapada, pescoço taurino, nariz adunco e andar elástico, nunca
O vi a falar com quem quer que fosse. Nem mesmo um sorriso ou um acenar de cabeça. E vejo-o todos os dias que estou no Jardim da Estrela.
Invariavelmente, quando chega dirige-se a um dos aparelhos de ginástica que lá estão e usa uns bons vinte minutos a pedalar com genica. Em seguida, senta-se num dos bancos do jardim, isolado, e está uma boa meia hora a dar de comer aos pombos. Mas fá-lo como aqui se vê ou, mais complicado ainda, agarrando-os (que eles se deixam agarrar por ele) e, um por um, leva-lhes o bico à mão para que depeniquem. Deve conhecer cada um deles, que a uns aceita e a outros recusa, como que a dizer “Hoje não é a tua vez!”
Os pombos, esses, conhecem-no à distância, e fazem bando no chão, por vezes ainda antes de ele lá chegar.
Esta fotografia é uma raridade, já que aconteceu quando, por uma vez sem exemplo, ele parou no caminho de regresso e aconteceu o que aqui vedes. Nunca ele tinha estado tão perto de mim a alimentá-los, nem eu tinha tido a coragem de dele me aproximar e quebrar a sua intimidade com eles para um registo.
Deste seu aspecto e comportamento resulta ser um dos que “São Diferentes”. E, em torno dessa diferença, bem inofensiva, muito se pode congeminar. Por mim, talvez devido à cultura cinematográfica norte-americana, consigo imaginá-lo como alguém que cumpriu uma longa e dura pena de prisão e que, lá dentro, se refugiou nos pombos como o símbolo da liberdade que não tinha. E que, em saindo e sentindo-se desenraizado, manteve o hábito e os amigos alados.
Não passa tudo isto de uma ficção, criada por alguém que passa horas a fio em torno de uma caixa de madeira encavalitada num tripé vetusto.
Mas… Quem sou eu para criticar o “Ser-se Diferente” dos outros? Não sei eu que não é fácil sê-lo?


Texto e imagem: by me