Uma maldade


Fiz uma maldade! Sei-o agora e sabia-o então! Mas o meu lado bom não resistiu e a parte demoníaca levou a melhor.
Estou assim condenado à danação eterna nos infernos satânicos. A menos que as centenas de eucaristias, dominicais e outras, transmitidas ao longo dos anos me garantam um lugar num qualquer paraíso celeste.
Elas eram seis. Divididas em três grupos, entraram dois pares por uma das portas, o outro pela outra.
Vinham com a decisão de quem tem um objectivo a cumprir, seguindo um plano préviamente gizado e com territórios definidos.
Abordavam passantes e estantes, sentados ou de pé, com um sorriso e palavras maviosas na boca e revistas e folhetos nas mãos. E eu ali estava, indefeso porque agarrado à câmara e tripé, sendo uma vítima garantida nos seus intentos. E fui!
As dúvidas esclareceram-se quando olhei para o cabeçalho da revista que me impuseram nas mãos: Adventistas do 7º dia.
Bem que lhes disse que não estava interessado, nem na revista, nem no folheto, nem nas palavras. Que não era crente por opção e que elas não me iriam converter. Inútil! Eu era uma alma perdida que elas haveriam de salvar, custasse o que custasse!
Foi então que senti as hastes crescerem por sob a pala do meu boné e a espinha prolongar-se numa cauda escamosa. O meu cigarro cheirou a enxofre e eu ataquei!
Falei-lhes da Tora, da Bíblia, do Corão, de Jonas. De Confúcio, Buda, Lutero, Gandy, Mandela, Marx, King. Recomendei-lhes a leitura de todos os livros sagrados de todas as religiões, de todos os continentes. Que vissem como o deus muda de nome e de aparência, que de múltiplo passa a uno de acordo com as tradições e os locais. E que todas estas versões, em todas as traduções e interpretações, falam do bem. Que o objectivo comum a todas elas é a felicidade e a perfeição, nesta vida, no paraíso ou numa reencarnação.
Elas aguentaram os embates, primeiro com estoicismo e solidez, depois vacilantes e olhando em redor, já pouco capazes de me dar réplicas.
A estocada final foi cruel e definitiva!
Disse-lhes que enquanto elas anunciavam a felicidade eterna a partir de um momento distante, eu promovia-a por um instante e agora, com as minhas fotos grátis.
Foi de facto, o golpe de misericórdia! Metendo os pés pelas mãos, já sem argumentos, apenas foram capazes de me convidar para ir a uma sessão no templo delas, algures em Lisboa.
E partiram para minha felicidade instantânea!
Passado um pedaço, ei-las que regressam. Desta vez todas seis juntas, que o terreno estava batido.
Uma das que comigo não tinha estado dirigiu-se a mim, com o sorriso esteriotipado na cara e a revista na mão. Não conseguiu dizer uma palavra.
Uma das minhas algozes transformadas em vítimas deu-lhe uma cotoveladela e disse-lhe algo que não entendi.
Mas o sorriso apagou-se, a revista baixou e os passos seguiram céleres em direcção ao portão do jardim.
Não mais as vi.
Por este pecado me confesso e penitencio. Oferecerei a segunda fotografia às primeiras duas pessoas que mo pedirem hoje, que é domingo e dia santo.
Afinal, que pode saber melhor que provocar um sorriso genuíno?

Texto: by meImagem: capa da revista citada

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